Sabemos todos que é impossível definir o «bom professor», a não ser através dessas listas
intermináveis de «competências», cuja simples enumeração se torna insuportável.
Mas é possível, talvez, esboçar alguns apontamentos simples, sugerindo disposições que caracterizam
o trabalho docente nas sociedades contemporâneas.
Durante muito tempo, procuraram-se os atributos ou as características que definiam o
«bom professor».
Esta abordagem conduziu, já na segunda metade do século XX, à
consolidação de uma trilogia que teve grande sucesso: saber (conhecimentos), saber-fazer
(capacidades), saber-ser (atitudes).
Existe uma (pre)disposição que não é natural mas construída, na
definição pública de uma posição com forte sentido cultural, numa profissionalidade docente
que não pode deixar de se construir no interior de uma pessoalidade do professor.
• O conhecimento.
Dizem-me que, para
instruir, é necessário conhecer aqueles que se instruem.
O trabalho do professor consiste na construção de práticas docentes que
conduzam os alunos à aprendizagem.
• A cultura profissional.
Ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar,
integrar-se numa profissão, aprender com os colegas mais experientes. É na escola e no
diálogo com os outros professores que se aprende a profissão. O registo das práticas, a
reflexão sobre o trabalho e o exercício da avaliação são elementos centrais para o
aperfeiçoamento e a inovação. São estas rotinas que fazem avançar a profissão.
• O tato pedagógico.
Quantos livros se gastaram para tentar apreender este conceito tão
difícil de definir? Nele cabe essa capacidade de relação e de comunicação sem a qual
não se cumpre o ato de educar. E também essa serenidade de quem é capaz de se dar
ao respeito, conquistando os alunos para o trabalho escolar. Saber conduzir alguém para
a outra margem, o conhecimento, não está ao alcance de todos. No ensino, as dimensões
profissionais cruzam-se sempre, inevitavelmente, com as dimensões pessoais.
• O trabalho em equipa.
Os novos modos de profissionalidade docente implicam um
reforço das dimensões colectivas e colaborativas, do trabalho em equipa, da intervenção
conjunta nos projetos educativos de escola. O exercício profissional organiza-se, cada
vez mais, em torno de «comunidades de prática», no interior de cada escola, mas
também no contexto de movimentos pedagógicos que nos ligam a dinâmicas que vão
para além das fronteiras organizacionais.
• O compromisso social.
Podemos chamar-lhe diferentes nomes, mas todos convergem
no sentido dos princípios, dos valores, da inclusão social, da diversidade cultural.
Educar é conseguir que a criança ultrapasse as fronteiras que, tantas vezes, lhe foram
traçadas como destino pelo nascimento, pela família ou pela sociedade. Hoje, a
realidade da escola obriga-nos a ir além da escola. Comunicar com o público, intervir
no espaço público da educação, faz parte do ethos profissional docente.
Ressaltamos quatro lições importantes para um bom professor:
- Em primeiro lugar, a referência sistemática a casos concretos, e o desejo de encontrar
soluções que permitam resolvê-los. Estes casos são «práticos», mas só podem ser resolvidos
através de uma análise que, partindo deles, mobiliza conhecimentos teóricos. A formação de
professores ganharia muito se se organizasse, preferentemente, em torno de situações concretas,
de insucesso escolar, de problemas escolares ou de programas de acção educativa. E se
inspirasse junto dos futuros professores a mesma obstinação e persistência que os médicos
revelam na procura das melhores soluções para cada caso.
- Em segundo lugar, a importância de um conhecimento que vai para além da «teoria» e
da «prática» e que reflete sobre o processo histórico da sua constituição, as explicações que
prevaleceram e as que foram abandonadas, o papel de certos indivíduos e de certos contextos, as
dúvidas que persistem, as hipóteses alternativas, etc. Como escreve Lee Shulman (1986) num
texto seminal, para ser professor não basta dominar um determinado conhecimento, é preciso
compreendê-lo em todas as suas dimensões.
- Em terceiro lugar, a procura de um conhecimento pertinente, que não é uma mera
aplicação prática de uma qualquer teoria, mas que exige sempre um esforço de reelaboração.
Estamos no âmago do trabalho do professor. Nos últimos vinte anos, vulgarizou-se o conceito
de transposição didática, trabalhado por Yves Chevallard (1985), para explicar a ação
docente. Posteriormente, Philippe Perrenoud (1998) avançou o conceito de transposição
pragmática para sublinhar a importância da mobilização prática dos saberes em situações
inesperadas e imprevisíveis. Pessoalmente, prefiro falar em transformação deliberativa, na
medida em que o trabalho docente não se traduz numa mera transposição, pois supõe uma
transformação dos saberes, e obriga a uma deliberação, isto é, a uma resposta a dilemas
pessoais, sociais e culturais.
- Em quarto lugar, a importância de conceber a formação de professores num contexto de
responsabilidade profissional, sugerindo uma atenção constante à necessidade de mudanças nas
rotinas de trabalho, pessoais, colectivas ou organizacionais. A inovação é um elemento central
do próprio processo de formação.
Outro fator essencial para um bom professor é a necessidade de elaborar um conhecimento pessoal (um auto-conhecimento)
no interior do conhecimento profissional e de captar (de capturar) o sentido de uma profissão
que não cabe apenas numa matriz técnica ou científica. Toca-se aqui em qualquer coisa de
indefinível, mas que está no cerne da identidade profissional docente.
O registo escrito, tanto das vivências pessoais como das práticas profissionais, é
essencial para que cada um adquira uma maior consciência do seu trabalho e da sua identidade
como professor. A formação deve contribuir para criar nos futuros professores hábitos de
reflexão e de auto-reflexão que são essenciais numa profissão que não se esgota em matrizes
científicas ou mesmo pedagógicas, e que se define, inevitavelmente, a partir de referências
pessoais.
Reforço ainda dois aspectos.
- Em primeiro lugar, a ideia da escola como o lugar da formação dos professores, como o
espaço da análise partilhada das práticas, enquanto rotina sistemática de acompanhamento, de
supervisão e de reflexão sobre o trabalho docente. O objectivo é transformar a experiência
colectiva em conhecimento profissional e ligar a formação de professores ao desenvolvimento
de projetos educativos nas escolas.
- Em segundo lugar, a ideia da docência como colectivo, não só no plano do
conhecimento mas também no plano da ética. Não há respostas feitas para o conjunto de
dilemas que os professores são chamados a resolver numa escola marcada pela diferença
cultural e pelo conflito de valores. Por isso, é tão importante assumir uma ética profissional que
se constrói no diálogo com os outros colegas.
A concretização desta mudança exige uma grande capacidade de comunicação dos
professores e um reforço da sua presença pública. Importa retomar uma tradição histórica das
escolas de formação do início do século XX, que procuravam acentuar o papel social dos professores.
Hoje, ainda que numa perspectiva diferente, é necessário reintroduzir esta dimensão
nos programas de formação de professores.
Nas sociedades contemporâneas, o prestígio de uma profissão mede-se, em grande
parte, pela sua visibilidade social. No caso dos professores estamos mesmo perante uma questão
decisiva, pois a sobrevivência da profissão depende da qualidade do trabalho interno nas
escolas, mas também da sua capacidade de intervenção no espaço público da educação.