domingo, 7 de agosto de 2016

O que é um Bom Professor?

Sabemos todos que é impossível definir o «bom professor», a não ser através dessas listas intermináveis de «competências», cuja simples enumeração se torna insuportável. 

Mas é possível, talvez, esboçar alguns apontamentos simples, sugerindo disposições que caracterizam o trabalho docente nas sociedades contemporâneas. 

 Durante muito tempo, procuraram-se os atributos ou as características que definiam o «bom professor». 

Esta abordagem conduziu, já na segunda metade do século XX, à consolidação de uma trilogia que teve grande sucesso: saber (conhecimentos), saber-fazer (capacidades), saber-ser (atitudes).

 Existe uma  (pre)disposição que não é natural mas construída, na definição pública de uma posição com forte sentido cultural, numa profissionalidade docente que não pode deixar de se construir no interior de uma pessoalidade do professor. 

• O conhecimento. 
 Dizem-me que, para instruir, é necessário conhecer aqueles que se instruem. 
O trabalho do professor consiste na construção de práticas docentes que conduzam os alunos à aprendizagem. 

• A cultura profissional. 
Ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar, integrar-se numa profissão, aprender com os colegas mais experientes. É na escola e no diálogo com os outros professores que se aprende a profissão. O registo das práticas, a reflexão sobre o trabalho e o exercício da avaliação são elementos centrais para o aperfeiçoamento e a inovação. São estas rotinas que fazem avançar a profissão. 

• O tato pedagógico. 
Quantos livros se gastaram para tentar apreender este conceito tão difícil de definir? Nele cabe essa capacidade de relação e de comunicação sem a qual não se cumpre o ato de educar. E também essa serenidade de quem é capaz de se dar ao respeito, conquistando os alunos para o trabalho escolar. Saber conduzir alguém para a outra margem, o conhecimento, não está ao alcance de todos. No ensino, as dimensões profissionais cruzam-se sempre, inevitavelmente, com as dimensões pessoais. 

• O trabalho em equipa. 
Os novos modos de profissionalidade docente implicam um reforço das dimensões colectivas e colaborativas, do trabalho em equipa, da intervenção conjunta nos projetos educativos de escola. O exercício profissional organiza-se, cada vez mais, em torno de «comunidades de prática», no interior de cada escola, mas também no contexto de movimentos pedagógicos que nos ligam a dinâmicas que vão para além das fronteiras organizacionais. 

• O compromisso social. 
Podemos chamar-lhe diferentes nomes, mas todos convergem no sentido dos princípios, dos valores, da inclusão social, da diversidade cultural. Educar é conseguir que a criança ultrapasse as fronteiras que, tantas vezes, lhe foram traçadas como destino pelo nascimento, pela família ou pela sociedade. Hoje, a realidade da escola obriga-nos a ir além da escola. Comunicar com o público, intervir no espaço público da educação, faz parte do ethos profissional docente. 

 Ressaltamos quatro lições importantes para um bom professor:

 - Em primeiro lugar, a referência sistemática a casos concretos, e o desejo de encontrar soluções que permitam resolvê-los. Estes casos são «práticos», mas só podem ser resolvidos através de uma análise que, partindo deles, mobiliza conhecimentos teóricos. A formação de professores ganharia muito se se organizasse, preferentemente, em torno de situações concretas, de insucesso escolar, de problemas escolares ou de programas de acção educativa. E se inspirasse junto dos futuros professores a mesma obstinação e persistência que os médicos revelam na procura das melhores soluções para cada caso. 

- Em segundo lugar, a importância de um conhecimento que vai para além da «teoria» e da «prática» e que reflete sobre o processo histórico da sua constituição, as explicações que prevaleceram e as que foram abandonadas, o papel de certos indivíduos e de certos contextos, as dúvidas que persistem, as hipóteses alternativas, etc. Como escreve Lee Shulman (1986) num texto seminal, para ser professor não basta dominar um determinado conhecimento, é preciso compreendê-lo em todas as suas dimensões. 

- Em terceiro lugar, a procura de um conhecimento pertinente, que não é uma mera aplicação prática de uma qualquer teoria, mas que exige sempre um esforço de reelaboração. Estamos no âmago do trabalho do professor. Nos últimos vinte anos, vulgarizou-se o conceito de transposição didática, trabalhado por Yves Chevallard (1985), para explicar a ação docente. Posteriormente, Philippe Perrenoud (1998) avançou o conceito de transposição pragmática para sublinhar a importância da mobilização prática dos saberes em situações inesperadas e imprevisíveis. Pessoalmente, prefiro falar em transformação deliberativa, na medida em que o trabalho docente não se traduz numa mera transposição, pois supõe uma transformação dos saberes, e obriga a uma deliberação, isto é, a uma resposta a dilemas pessoais, sociais e culturais. 

- Em quarto lugar, a importância de conceber a formação de professores num contexto de responsabilidade profissional, sugerindo uma atenção constante à necessidade de mudanças nas rotinas de trabalho, pessoais, colectivas ou organizacionais. A inovação é um elemento central do próprio processo de formação.

  Outro fator essencial para um bom professor é a  necessidade de elaborar um conhecimento pessoal (um auto-conhecimento) no interior do conhecimento profissional e de captar (de capturar) o sentido de uma profissão que não cabe apenas numa matriz técnica ou científica. Toca-se aqui em qualquer coisa de indefinível, mas que está no cerne da identidade profissional docente. O registo escrito, tanto das vivências pessoais como das práticas profissionais, é essencial para que cada um adquira uma maior consciência do seu trabalho e da sua identidade como professor. A formação deve contribuir para criar nos futuros professores hábitos de reflexão e de auto-reflexão que são essenciais numa profissão que não se esgota em matrizes científicas ou mesmo pedagógicas, e que se define, inevitavelmente, a partir de referências pessoais. 

Reforço ainda dois aspectos. 

- Em primeiro lugar, a ideia da escola como o lugar da formação dos professores, como o espaço da análise partilhada das práticas, enquanto rotina sistemática de acompanhamento, de supervisão e de reflexão sobre o trabalho docente. O objectivo é transformar a experiência colectiva em conhecimento profissional e ligar a formação de professores ao desenvolvimento de projetos educativos nas escolas. 

- Em segundo lugar, a ideia da docência como colectivo, não só no plano do conhecimento mas também no plano da ética. Não há respostas feitas para o conjunto de dilemas que os professores são chamados a resolver numa escola marcada pela diferença cultural e pelo conflito de valores. Por isso, é tão importante assumir uma ética profissional que se constrói no diálogo com os outros colegas. 

A concretização desta mudança exige uma grande capacidade de comunicação dos professores e um reforço da sua presença pública. Importa retomar uma tradição histórica das escolas de formação do início do século XX, que procuravam acentuar o papel social dos  professores. 

Hoje, ainda que numa perspectiva diferente, é necessário reintroduzir esta dimensão nos programas de formação de professores. Nas sociedades contemporâneas, o prestígio de uma profissão mede-se, em grande parte, pela sua visibilidade social. No caso dos professores estamos mesmo perante uma questão decisiva, pois a sobrevivência da profissão depende da qualidade do trabalho interno nas escolas, mas também da sua capacidade de intervenção no espaço público da educação.